Não são raras as ocasiões em que preferimos nos abster de dizer a verdade. Também não são infundadas as razões pelas quais optamos por proceder assim. De fato, se ousarmos manifestar o que pensamos, tornaremo-nos, no mínimo, indesejáveis e, se considerarmos que uma das excelências humanas está justamente na capacidade de convívio, no cultivo de aprazíveis relações, nada mais coerente.
Parresía é o termo em grego para designar a coragem de se dizer a verdade, expor tudo, de se falar com franqueza. O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em sua obra "O governo de si e dos outros", tratará desta antiqüíssima noção e seu uso político desde os primórdios da politéia (constituição) e da democracia na Grécia.
A palavra certa, proferida no momento adequado (kairós - tempo oportuno) pode revelar injustiças, impor lucidez e também ferir. Metralhadora ou flecha certeira, dispará-las pode aniquilar moralmente um (a) poderoso (a).
Estar convicto é fundamental. Se tratar-se de mero atrevimento, irresponsável, o dano pode ser irreversível, sobretudo se houver platéia. Mesmo que se tente remediar, a ardilosidade de se ofender em público e se retratar em particular é expediente inaceitável.
A parresía é uma virtude e seu emprego pode se dar tanto na esfera pública quanto na privada. Algumas características lhe são peculiares: uma delas é a de que o destemido que confrontar o poder com a verdade esteja em condição subalterna a seu interlocutor. Não há parresía quando um pai repreende um filho, um professor contesta seu aluno ou o patrão adverte o funcionário.
Há de se ter muita intimidade e confiança para que, sem magoar, sejamos autênticos. Quando a verdade é proferida sem malícia, não se guarda rancores. É delicado sermos parrésicos na vida privada e, salvo raras exceções, até dispensável.
Embora estejamos cônscios de que evitar o confronto, abstendo-se de uma corajosa franqueza implica numa fatura onde se discrimina hipocrisia, falsidade, fingimento e mentira, sobretudo no âmbito das relações familiares e de amizade, quem teria coragem de dizer assim, na lata, que o filho é um ingrato, os progenitores do cônjuge são inconvenientes ou maledicentes? Que o cunhado é um inútil e a cunhada lhe parece dissimulada, invejosa ou que, após a plástica, sua amiga a faz lembrar Sartre?
Ser parresiasta (parrésico ou Parresiázesthai) não é ser irônico, crítico, persuadir ou desafiar proferindo ofensas e insultos gratuitos. Isso é mera opinião (dóxa), não necessariamente uma opinião verdadeira (dóxa alethés).
Mais que uma recusa à mentira, à bajulação, peculiar da parresía é haver um alto preço a ser pago. Por isso, será no âmbito da vida profissional e cívica que optar por dizer a verdade pode acarretar implicações de alcance imprevisíveis: retaliações, demissões, exílio e até mesmo a morte.
Na vida privada em desavença (império de "futrica de comadres", território de desocupadas aves de rapina), as conseqüências de dizer a verdade podem ser relativamente mensuráveis e, dependendo do caso, mesmo que desconfortável, o máximo que pode acontecer é o rompimento de relações notadamente desarmoniosas e inautênticas, algo capaz de revelar-se até benéfico à saúde psíquica.
É no dizer público que a parresía é mais parresía. Foucault afirma que "as diferentes maneiras de dizer a verdade podem aparecer como formas" e analisa quatro delas: estratégia de demonstração, de persuasão, de ensino e de discussão.
Embora possa utilizar elementos de demonstração, a parresía não é uma maneira de demonstrar: "não é a demonstração nem a estrutura racional do discurso que vão definir a parresía".
Quanto à retórica, diz ele: "a parresía como técnica, como procedimento, como maneira de dizer as coisas, pode e muitas vezes deve efetivamente utilizar os recursos da retórica (...) a parresía se define fundamentalmente, essencialmente e primeiramente como o dizer-a-verdade, enquanto a retórica é uma maneira, uma arte ou uma técnica de dispor os elementos do discurso a fim de persuadir." Sem dúvida, a retórica não se ocupa com o fato do discurso ser ou não verdadeiro e isso é essencial à parresía.
Sobre ser uma maneira de ensinar, uma pedagogia, Foucault também refuta dizendo haver: "(...) toda uma brutalidade, toda uma violência, todo um lado abrupto da parresía, totalmente diferente do que pode ser um procedimento pedagógico. O parresiasta, aquele que diz a verdade dessa forma, pois bem, ele lança a verdade na cara daquele com quem dialoga ou a quem se dirige (...)".
E complementa dizendo que "(...) quem diz a verdade lança a verdade na cara desse interlocutor de maneira tão cortante e tão definitiva, que o outro em frente não pode fazer mais que calar-se, ou sufocar de furor (...)".
Pode-se servir da parresía para emitir lições, aforismos, réplicas, opiniões, juízos etc., mas o que mais a caracteriza, onde há verdadeiramente parresía, é quando não se fica impune ao pronunciá-la.
Ele diz crer que, se quisermos analisar a parresía, não devemos nos ater ao "lado da estrutura interna do discurso, nem do lado da finalidade que o discurso verdadeiro procura atingir o interlocutor, mas do lado do locutor, ou antes, do lado do risco que o dizer-a-verdade abre para o próprio interlocutor".
Arriscado, proferir a verdade é encontrar a fúria: "é abrir para quem diz a verdade um certo espaço de risco, é abrir um perigo em que a própria existência do locutor vai estar em jogo." De fato, é se expor pelo que o Homem mais preza: liberdade. Corajosos, Parresiázesthai estão dispostos a morrer por ela.
Por Luciene Félix, Professora de Filosofia e Mitologia Grega da Escola Superior de Direito Constitucional.